quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Comentários UERJ - o texto de Arnaldo Antunes


A origem da poesia
A origem da poesia se confunde com a origem da própria linguagem.
Talvez fizesse mais sentido perguntar quando a linguagem verbal deixou de ser poesia. Ou: qual a origem do discurso não-poético, já que, restituindo laços mais íntimos entre os signos e as coisas por eles designadas, a poesia aponta para um uso muito primário da linguagem, que parece anterior ao perfil de sua ocorrência nas conversas, nos jornais, nas aulas, conferências, discussões, discursos, ensaios ou telefonemas.
Como se ela restituísse, através de um uso específico da língua, a integridade entre nome e coisa — que o tempo e as culturas do homem civilizado trataram de separar no decorrer da história.
A manifestação do que chamamos de poesia hoje nos sugere mínimos flashbacks de uma possível infância da linguagem, antes que a representação rompesse seu cordão umbilical, gerando essas duas metades — significante e significado.
Houve esse tempo? Quando não havia poesia porque a poesia estava em tudo o que se dizia? Quando o nome da coisa era algo que fazia parte dela, assim como sua cor, seu tamanho, seu peso? Quando os laços entre os sentidos ainda não se haviam desfeito, então música, poesia, pensamento, dança, imagem, cheiro, sabor, consistência se conjugavam em experiências integrais, associadas a utilidades práticas, mágicas, curativas, religiosas, sexuais, guerreiras?
Pode ser que essas suposições tenham algo de utópico, projetado sobre um passado pré-babélico, tribal, primitivo. Ao mesmo tempo, cada novo poema do futuro que o presente alcança cria, com sua ocorrência, um pouco desse passado.
Lembro-me de ter lido, certa vez, um comentário de Décio Pignatari, em que ele chamava a atenção para o fato de, tanto em chinês como em tupi, não existir o verbo ser, enquanto verbo de ligação. Assim, o ser das coisas ditas se manifestaria nelas próprias (substantivos), não numa partícula verbal externa a elas, o que faria delas línguas poéticas por natureza, mais propensas à composição analógica.
Mais perto do senso comum, podemos atentar para como colocam os índios americanos falando, na maioria dos filmes de cowboy — Eles dizem "maçã vermelha", "água boa", "cavalo veloz"; em vez de "a maçã é vermelha", "essa água é boa", "aquele cavalo é veloz". Essa forma mais sintética, telegráfica, aproxima os nomes da própria existência — como se a fala não estivesse se referindo àquelas coisas, e sim apresentando-as (ao mesmo tempo em que se apresenta).
No seu estado de língua, no dicionário, as palavras intermediam nossa relação com as coisas, impedindo nosso contato direto com elas. A linguagem poética inverte essa relação pois vindo a se tornar, ela em si, coisa, oferece uma via de acesso sensível mais direto entre nós e o mundo.
[...]
Já perdemos a inocência de uma linguagem plena assim. As palavras se desapegaram das coisas, assim como os olhos se desapegaram dos ouvidos, ou como a criação se desapegou da vida. Mas temos esses pequenos oásis — os poemas — contaminando o deserto da referencialidade.
Arnaldo Antunes
Esse foi o texto que serviu como base para a realização de 7 questões da prova da UERJ. Apesar de interessante, não o considero fácil. Eu leria esse texto umas duas vezes, faria marcações, anotações ao lado e, só depois, começaria a fazer as questões.
E vamos a elas!
Questão 3 – A poesia aponta para um uso muito primário da linguagem, que parece anterior ao perfil de sua ocorrência nas conversas, nos jornais, nas aulas, conferências, discussões, discursos, ensaios ou telefonemas.
A comparação entre a poesia e outros usos da linguagem põe em destaque a seguinte característica do discurso poético:
(A)  Revela-se como expressão subjetiva
(B)  Manifesta-se na referência ao tempo
(C)  Afasta-se das praticidades cotidianas
(D)  Conjuga-se com necessidades concretas

O gabarito divulgado dessa questão é a letra C. Se eu tivesse feito essa prova, também teria marcado essa opção, no entanto, não concordo com ela. Aliás, eu discordo de todas as opções apresentadas.
Sobre a opção A: primeiro, é importante que se entenda o que significa subjetividade.
Subjetivo: 1.Pertencente ou relativo ao sujeito. 2.Que está somente no sujeito, no eu; que passa ou existe no espírito. 3. Que exprime ou manifesta apenas as ideias ou preferências da própria pessoa; pessoal, individual.
Dicionário Michaelis on line
Agora, é possível perceber que a letra A não é adequada, pois o discurso poético não se revela apenas como expressão pessoal. A poesia também está relacionada ao mundo exterior, ao objeto, ou seja, se revela como expressão objetiva também. Quando o autor cita os filmes de cowboy e fala, por exemplo, da “maçã vermelha” como um exemplo de linguagem poética, fica claro que não se trata de uma referência subjetiva, trata-se de referência a um objeto externo à pessoa.
O autor apresenta a ideia de que em “maçã vermelha” a linguagem é mais poética do que em “Essa maçã é vermelha”. Neste último formato, a estrutura já estaria mais relacionada aos discursos “modernos”, que precisam seguir um formato para atender às necessidades sociais.

Sobre a letra B – Manifesta-se na referência ao tempo.
O fato de haver no texto a ideia de que a poesia relaciona-se à origem da linguagem, a um tempo passado, não significa que a característica do discurso poético seja manifestar-se na referência ao tempo. A poesia se manifesta na referência às coisas – objetivas e subjetivas.

Sobre a letra C – Afasta-se das praticidades cotidianas – Alternativa considerada correta pela banca.
Como disse no início, não concordo com essa resposta e as observações apresentadas sobre as letras a e b já antecipam minha explicação. O fato de a poesia ser anterior ao uso que se faz da palavra  em situações mais padronizadas de comunicação, como os discursos, os telefonemas etc, não indica, a meu ver, que ela se afaste das praticidades cotidianas. Segundo as ideias do texto, talvez ela se afaste da prática do mundo de hoje, do cotidiano que exige um certo padrão estrutural de comunicação, mas não das práticas cotidianas em geral.
O trecho a seguir confirma o que estou dizendo:
“Como se ela restituísse, através de um uso específico da língua, a integridade entre nome e coisa — que o tempo e as culturas do homem civilizado trataram de separar no decorrer da história”.
É claro que, como eu também já disse, marcaria essa opção se tivesse feito a prova, pois, considerando o trecho utilizado como base para a pergunta, essa me parece a melhor alternativa. Isso quer dizer que me pareceu um dos exemplos de questão em que devemos marcar a mais adequada... e não exatamente a correta.
Acho que vou enviar um e-mail para o próprio Arnaldo Antunes e perguntar que alternativa ele marcaria nessa questão. Seria interessante saber a sua opinião. Vou tentar o contato.
Sobre a letra D – Conjuga-se com necessidades concretas
Essa não poderia ser, já que o discurso poético não está relacionado apenas às necessidades concretas.
Esse trecho me ajuda na explicação:
“[...]Quando os laços entre os sentidos ainda não se haviam desfeito, então música, poesia, pensamento, dança, imagem, cheiro, sabor, consistência se conjugavam em experiências integrais, associadas a utilidades práticas, mágicas, curativas, religiosas, sexuais, guerreiras?”.

Questão 4Pode ser que essas suposições tenham algo de utópico.
Neste fragmento, a expressão em destaque é empregada para formar um conhecido recurso de argumentação.
Esse recurso pode ser definido como:
(A)  admitir uma hipótese para depois discuti-la
(B)  retomar uma informação para depois criticá-la
(C)  relativizar um conceito para depois descrevê-lo
(D)  apresentar uma opinião para depois sustentá-la
É preciso ler novamente todo o trecho para responder a essa questão.
“Pode ser que essas suposições tenham algo de utópico, projetado sobre um passado pré-babélico, tribal, primitivo. Ao mesmo tempo, cada novo poema do futuro que o presente alcança cria, com sua ocorrência, um pouco desse passado”.Sem retomar a leitura do texto, a tendência é marcar a opção C, pois o “pode ser” confere relativização à ideia apresentada. Ou seja, não se está dizendo “Essas suposições SÃO utópicas”. O “pode ser” relativiza a argumentação.
Porém...
Não é essa a análise que deve ser feita. Lendo-se o trecho completo, o que se percebe é que o “pode ser” é utilizado para admitir que existe a possibilidade de as ideias apresentadas serem utópicas, porém, mais a frente, essa ideia é discutida – e refutada.
“Ao mesmo tempo, cada novo poema do futuro que o presente alcança cria, com sua ocorrência, um pouco desse passado”.
Então, resposta correta: letra A.

Questão 5: Mais perto do senso comum
A expressão que inicia o trecho transcrito acima introduz uma comparação em relação ao comentário anterior, feito por Décio Pignatari.
O emprego da expressão comparativa revela que o autor considera o exemplo dos filmes de cowboy como algo que teria a seguinte caracterização:
(A)  muito complexo
(B)  menos elaborado
(C)  pouco importante
(D)  bastante diferente
Retomando a leitura dos dois parágrafos em questão, percebe-se que o exemplo dos filmes de cowboy foi apresentado para esclarecer a ideia apresentada por Décio Pignatari.
Quem está acostumado a fazer redações sabe que o uso de exemplos é de extrema importância para tornar o tema que está sendo desenvolvido mais concreto, mais real, menos teórico. E foi exatamente essa a função do exemplo dos filmes de cowboy no texto.
Dessa maneira, a resposta é a letra B. Por meio de uma informação menos elaborada, menos teórica, mais perto do senso comum, mais fácil para o entendimento de todos, mais ilustrativa, comprova-se a ideia de Decio Pignatari.

Questão 6Na coesão textual, ocorre o que se chama catáfora quando um termo se refere a algo que ainda vai ser enunciado na frase.
Um exemplo em que o termo destacado constrói uma catáfora é:
(A)  Como se ela restituísse
(B)  Pode ser que essas suposições tenham algo de utópico.
(C)  não numa partícula verbal externa a elas
(D)  No seu estado de língua, no dicionário, as palavras intermedeiam
Analisando as alternativas:
- Na letra A, “ela” faz referência à poesia, já citada anteriormente.
- Na letra B, “essas” são as suposições apresentadas anteriormente, no parágrafo que se inicia com “Houve esse tempo?”.
- Na letra C, “elas” retoma a expressão já citada “coisas ditas”.
- Na letra D, temos a catáfora. “Seu” refere-se às “palavras” (as palavras intermedeiam).

Questão 7 – A linguagem poética inverte essa relação, pois, vindo a se tornar, ela em si, coisa, oferece uma via de acesso sensível mais direto entre nós e o mundo.
O vocábulo destacado estabelece uma relação de sentido com o que está enunciado antes. Essa relação de sentido pode ser definida como:
(A)  Explicação
(B)  Finalidade
(C)  Conformidade
(D)  Simultaneidade
Nesse enunciado, a conjunção “pois” introduz uma explicação. Pode-se pensar da seguinte forma:
Pergunta: Por que a linguagem poética inverte essa relação?
Resposta/ Explicação: porque oferece uma via de acesso sensível mais direto entre nós e o mundo.
Resposta: letra A

Questão 8Mas temos esses pequenos oásis – os poemas – contaminando o deserto da referencialidade.
As figuras de linguagem superpostas na frase são:
(A)  Metáfora e antítese
(B)  Ironia e metonímia
(C)  Elipse e comparação
(D)  Personificação e hipérbole
Resposta: letra A.
Metáfora: chamar os poemas de oásis e a linguagem não-poética de deserto.
Antítese: Oásis e deserto; poema e linguagem não-poética (referencialidade).

Questão 9No último parágrafo, o autor se refere à plenitude da linguagem poética, fazendo, em seguida, uma descrição que corresponde à linguagem não-poética, ou seja, à linguagem referencial.
Pela descrição apresentada, a linguagem referencial teria, em sua origem, o seguinte traço fundamental:
(A)  o desgaste da intuição
(B)  a dissolução da memória
(C)  a fragmentação da experiência
(D)  o enfraquecimento da percepção
A resposta só pode ser a letra C – fragmentação da experiência. Isso fica claro não só no último parágrafo, mas também em outros momentos do texto, em que se tem a ideia de fragmentação.
Veja:
“As palavras se desapegaram das coisas, assim como os olhos se desapegaram dos ouvidos, ou como a criação se desapegou da vida”.
“Como se ela restituísse, através de um uso específico da língua, a integridade entre nome e coisa — que o tempo e as culturas do homem civilizado trataram de separar no decorrer da história”.
“antes que a representação rompesse seu cordão umbilical, gerando essas duas metades — significante e significado”.

É isso!
Em breve, falarei sobre as últimas seis questões da prova.
Até mais!

6 comentários:

  1. Querida professora orientadora, estou amando o blog. Todos os dias eu entro e sempre vejo as mesmas postagens pra fixar bem todas suas analises, dicas e comentários... Estudar assim fica bem mais fácil!

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  2. Olá!!
    Que bom que está gostando do blog!
    Mas...como vc postou como anônimo, não sei com quem estou falando. Quem é o senhor?? rs
    Beijinho!
    Lygia

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  3. Esta sua postagem é uma pérola, dentre outras de análise que considero muito importantes - caberia dizer, mesmo, que são um ótimo modo para estudar interpretação textual.
    Eu adoro o trabalho do Arnaldo.
    Sobre a questão 3, também teria escolhido a mesma resposta - a mais coerente com o texto. Acredito que ela, como você avaliou, não seja correta categoricamente. No entanto, se houvessem dito: nos afastar do uso cotidiano da palavra. Teria ficado melhor, ouso dizer até: correto. A palavra poética tem essa propriedade, a de nos fazer estranhar o que antes era visto com familiaridade. Você(s) concorda(m)? E o Arnaldo respondeu tua pergunta? ;)

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  4. Menino.Guaiaqui, não consegui contato com o Arnaldo, mas continuarei tentando.

    Lygia

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  5. Será que poderia explicar melhor, o porque de ser, na questão 9, uma fragmentação da experiência ?

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  6. Tive prova de Teoria da Literatura hoje, baseado nesse texto de Arnaldo Antunes.
    Espero que a professora leve em consideração a "subjetividade" de interpretação nas minhas respostas.
    Pois, se depender do gabarito...

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